No início do mês de novembro, o
Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, liberou para julgamento o
Recurso Extraordinário sobre o sacrifício de animais nas religiões
afro-brasileiras. Essa pauta não é recente, o referido ministro é relator do
recurso desde setembro de 2006. Para melhor compreensão dessa pauta, vou
apresentar como ela começou.
Em 2003, a Assembleia Legislativa do
Rio Grande do Sul aprovou o Código Estadual de Proteção de Animais (Lei
11.915/03), proposta pelo Deputado e então pastor evangélico Manoel Maria em
1999 (PL 230 1999), cuja redação do segundo artigo versa:
I - ofender ou
agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência
capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis
de existência;
II - manter animais
em local completamente desprovido de asseio ou que lhes impeçam a movimentação,
o descanso ou os privem de ar e luminosidade;
III - obrigar animais
a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força;
IV - não dar morte
rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo;
V - exercer a venda
ambulante de animais para menores desacompanhados por responsável legal;
VI - enclausurar
animais com outros que os molestem ou aterrorizem;
VII - sacrificar
animais com venenos ou outros métodos não preconizados pela Organização Mundial
da Saúde - OMS -, nos programas de profilaxia da raiva.
Apesar de nenhum parágrafo do artigo
proibir o sacrifício de animais em rituais religiosos, líderes das religiões
afro-brasileiras, que já estavam se organizando em uma Comissão/Congregação em
Defesa das Religiões Afro-brasileiras (CDRA), devido os ataques sofridos pela
mídia evangélica, principalmente a Igreja Universal do Reio de Deus,
preocuparam-se com o projeto de lei e se mobilizaram prevendo uma possível
interpretação fundamentada no preconceito para a proibição do sacrifício ritual
de animais em seus cultos, que de fato ocorreu.
A CDRA se articulou e teve o apoio do
Deputado Estadual Edson Portilho que apresentou na Assembleia Legislativa o projeto
de lei 282/03, para estabelecer exceção no artigo segundo do Código de Proteção
de Animais para os rituais de religião de matriz africana, com base no
parágrafo seis do artigo quinto da Constituição federal, “é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos
cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto
e a suas liturgias”.
Após uma grande discussão, tanto na
Assembleia, quanto na mídia local, o projeto do deputado Edson Portilho foi aprovado
com 32 votos a favor e 2 contrários, e o Código de Proteção dos Animais, no seu
artigo segundo recebeu nova redação ao final: “Parágrafo único - Não se
enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões
de matriz africana. (Incluído pela Lei n° 12.131/04)”.
Porém, a questão não terminou.
No ano seguinte, abril de 2005, o Procurador-Geral
de Justiça do Estado apresentou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 70010129690) no Tribunal de Justiça, solicitando a
retirada da lei do Deputado Portilho, por considerá-la inconstitucional no
plano formal e material. Sendo formal, por não ser competência de o Estado
legislar sobre questão penal (o crime de maus-tratos), sendo competência da
União (Federal). Material, por infringir o princípio da isonomia, da igualdade
de direitos de todas as religiões, de forma que a lei só permite a exceção às
religiões afro-brasileiras, e desconsidera outras que também fazem sacrifícios,
como o Islamismo e o Judaísmo. Apesar da inconstitucionalidade, o Procurador ressaltou
que a proibição do artigo segundo do Código de Proteção dos Animais aprovado
antes da alteração proposta pelo deputado Edson Portilho, não pode interferir
ou se referir aos sacrifícios de animais dos cultos das religiões
afro-brasileiras, visto que “porquanto jamais a liberdade de religião,
constitucionalmente garantida, poderia ser afetada decisivamente em seu núcleo
essencial por norma protetiva de animais”.
A ADI foi julgada no mesmo mês e ano pelos
desembargadores que mantiveram a exceção aos cultos das religiões
afro-brasileira. Dessa forma, foi garantida a prática do sacrifício ritual de
animais pelas religiões afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Sul, desde
que não haja excesso ou requintes de crueldade, como também o sacrifício de
animais silvestres e espécies ameaçadas de extinção. Entretanto, no ano
seguinte, setembro de 2006, a decisão foi objeto de Recurso Extraordinário no
Supremo Tribunal Federal pelo Ministério Público Estadual, sendo atualmente
colocado em pauta para julgamento pelo Plenário do Superior Tribunal Federal.
O recurso do Ministério Público do Rio
Grande do Sul não visa proibir o sacrifício de animais nos cultos ou liturgia
das religiões afro-brasileira, “impedir o sacrifício ritual de animais implica,
para esses cultos, a perda da própria identidade da sua expressão cultural” (ADI 70010129690), mas propõe a isonomia na
prática do sacrifício, para não dar privilégio apenas a religião de matriz
africana. Como também não considera o sacrifício como uma forma de tratamento
cruel aos animais, para que ele seja uma exceção ao artigo que se refere a
proibição de maus tratos e sofrimento aos animais.
Até concordo, que a redação da lei seja
alterada de forma a garantir o livre exercício dos cultos e liturgias das
religiões. Porém, o destaque ou exceção dado as religiões afro-brasileiras
decorreu do conflito de intolerância e preconceito religioso, principalmente da
vertente evangélica neopentecostal.
Após aprovação da Lei 11.915/03 (Código
Estadual de Proteção de Animais) em 2003, ocorreu casos de interdição e
solicitação de interdição de terreiros devido à prática do sacrifício. O que
impulsionou mais ainda a organização e luta da Congregação em Defesa das
Religiões Afro-brasileiras pela mudança da lei, evitando esse tipo de interpretação.
Além do caso específico no Rio Grande do Sul, em 2015 ele voltou a ser
discutido através de Projeto de Lei 21/2015, da deputada Regina Becker
Fortunati, que pretendia alterar o Código de Defesa dos Animais para o texto
original com o intuito de proibir o sacrifício de animais nos cultos das
religiões de matriz africana, não tendo êxito. Outros projetos de leis com a mesma
finalidade explicitamente foram discutidos nos municípios de Piracicaba/SP
(2010), Santo André/SP (2011), Salvador/BA, São José do Rio Preto/SP (2015), com
o mesmo resultado, exceto o caso mais recente no município de Cotia/SP, com a
aprovação da lei 1960/2016, que proíbe a utilização e sacrifício de animais em
rituais e cultos.
Perante tantos casos, a decisão do
Supremo Tribunal Federal poderá por fim a inúmeras tentativas de proibição do
sacrifício ritual de animais, em sua maioria propostas por políticos
evangélicos, que usam do discurso de defesa dos animais para ocultar a
intolerância religiosa. Como também, poderá reforçar e instrumentalizar
legalmente essa intolerância, de modo que os religiosos afro-brasileiros serão
forçados a mudar sua prática ritual, ou voltar a fazer como seus antepassados
em que os cultos eram realizados às escondidas, “rezados baixos”, na época que
os cultos afro-brasileiros eram considerados crimes e perseguidos pela polícia.
A liberdade de culto será preservada
nesse julgamento? Tenho minhas dúvidas, principalmente no contexto político,
jurídico e midiático atual, em que forças conservadoras têm conseguido impor
seus interesses. Por isso, é necessária a articulação e organização de toda
comunidade religiosa afro-brasileira, a exemplo do que ocorreu no Rio Grande do
Sul, para resistir e lutar pela garantia da continuidade de seus cultos e
liturgias.
José Roberto Oliveira dos Santos
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