sexta-feira, 11 de novembro de 2016

STF – o sacrifício de animais nas religiões afro-brasileiras em julgamento


No início do mês de novembro, o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, liberou para julgamento o Recurso Extraordinário sobre o sacrifício de animais nas religiões afro-brasileiras. Essa pauta não é recente, o referido ministro é relator do recurso desde setembro de 2006. Para melhor compreensão dessa pauta, vou apresentar como ela começou.
Em 2003, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou o Código Estadual de Proteção de Animais (Lei 11.915/03), proposta pelo Deputado e então pastor evangélico Manoel Maria em 1999 (PL 230 1999), cuja redação do segundo artigo versa:

I - ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência;
II - manter animais em local completamente desprovido de asseio ou que lhes impeçam a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade;
III - obrigar animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força;
IV - não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo;
V - exercer a venda ambulante de animais para menores desacompanhados por responsável legal;
VI - enclausurar animais com outros que os molestem ou aterrorizem;
VII - sacrificar animais com venenos ou outros métodos não preconizados pela Organização Mundial da Saúde - OMS -, nos programas de profilaxia da raiva.
 
Apesar de nenhum parágrafo do artigo proibir o sacrifício de animais em rituais religiosos, líderes das religiões afro-brasileiras, que já estavam se organizando em uma Comissão/Congregação em Defesa das Religiões Afro-brasileiras (CDRA), devido os ataques sofridos pela mídia evangélica, principalmente a Igreja Universal do Reio de Deus, preocuparam-se com o projeto de lei e se mobilizaram prevendo uma possível interpretação fundamentada no preconceito para a proibição do sacrifício ritual de animais em seus cultos, que de fato ocorreu.
A CDRA se articulou e teve o apoio do Deputado Estadual Edson Portilho que apresentou na Assembleia Legislativa o projeto de lei 282/03, para estabelecer exceção no artigo segundo do Código de Proteção de Animais para os rituais de religião de matriz africana, com base no parágrafo seis do artigo quinto da Constituição federal, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
Após uma grande discussão, tanto na Assembleia, quanto na mídia local, o projeto do deputado Edson Portilho foi aprovado com 32 votos a favor e 2 contrários, e o Código de Proteção dos Animais, no seu artigo segundo recebeu nova redação ao final: “Parágrafo único - Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana. (Incluído pela Lei n° 12.131/04)”.
Porém, a questão não terminou.
No ano seguinte, abril de 2005, o Procurador-Geral de Justiça do Estado apresentou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 70010129690) no Tribunal de Justiça, solicitando a retirada da lei do Deputado Portilho, por considerá-la inconstitucional no plano formal e material. Sendo formal, por não ser competência de o Estado legislar sobre questão penal (o crime de maus-tratos), sendo competência da União (Federal). Material, por infringir o princípio da isonomia, da igualdade de direitos de todas as religiões, de forma que a lei só permite a exceção às religiões afro-brasileiras, e desconsidera outras que também fazem sacrifícios, como o Islamismo e o Judaísmo. Apesar da inconstitucionalidade, o Procurador ressaltou que a proibição do artigo segundo do Código de Proteção dos Animais aprovado antes da alteração proposta pelo deputado Edson Portilho, não pode interferir ou se referir aos sacrifícios de animais dos cultos das religiões afro-brasileiras, visto que “porquanto jamais a liberdade de religião, constitucionalmente garantida, poderia ser afetada decisivamente em seu núcleo essencial por norma protetiva de animais”.
A ADI foi julgada no mesmo mês e ano pelos desembargadores que mantiveram a exceção aos cultos das religiões afro-brasileira. Dessa forma, foi garantida a prática do sacrifício ritual de animais pelas religiões afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Sul, desde que não haja excesso ou requintes de crueldade, como também o sacrifício de animais silvestres e espécies ameaçadas de extinção. Entretanto, no ano seguinte, setembro de 2006, a decisão foi objeto de Recurso Extraordinário no Supremo Tribunal Federal pelo Ministério Público Estadual, sendo atualmente colocado em pauta para julgamento pelo Plenário do Superior Tribunal Federal.
O recurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul não visa proibir o sacrifício de animais nos cultos ou liturgia das religiões afro-brasileira, “impedir o sacrifício ritual de animais implica, para esses cultos, a perda da própria identidade da sua expressão cultural” (ADI 70010129690), mas propõe a isonomia na prática do sacrifício, para não dar privilégio apenas a religião de matriz africana. Como também não considera o sacrifício como uma forma de tratamento cruel aos animais, para que ele seja uma exceção ao artigo que se refere a proibição de maus tratos e sofrimento aos animais.
Até concordo, que a redação da lei seja alterada de forma a garantir o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões. Porém, o destaque ou exceção dado as religiões afro-brasileiras decorreu do conflito de intolerância e preconceito religioso, principalmente da vertente evangélica neopentecostal.
Após aprovação da Lei 11.915/03 (Código Estadual de Proteção de Animais) em 2003, ocorreu casos de interdição e solicitação de interdição de terreiros devido à prática do sacrifício. O que impulsionou mais ainda a organização e luta da Congregação em Defesa das Religiões Afro-brasileiras pela mudança da lei, evitando esse tipo de interpretação. Além do caso específico no Rio Grande do Sul, em 2015 ele voltou a ser discutido através de Projeto de Lei 21/2015, da deputada Regina Becker Fortunati, que pretendia alterar o Código de Defesa dos Animais para o texto original com o intuito de proibir o sacrifício de animais nos cultos das religiões de matriz africana, não tendo êxito. Outros projetos de leis com a mesma finalidade explicitamente foram discutidos nos municípios de Piracicaba/SP (2010), Santo André/SP (2011), Salvador/BA, São José do Rio Preto/SP (2015), com o mesmo resultado, exceto o caso mais recente no município de Cotia/SP, com a aprovação da lei 1960/2016, que proíbe a utilização e sacrifício de animais em rituais e cultos.
Perante tantos casos, a decisão do Supremo Tribunal Federal poderá por fim a inúmeras tentativas de proibição do sacrifício ritual de animais, em sua maioria propostas por políticos evangélicos, que usam do discurso de defesa dos animais para ocultar a intolerância religiosa. Como também, poderá reforçar e instrumentalizar legalmente essa intolerância, de modo que os religiosos afro-brasileiros serão forçados a mudar sua prática ritual, ou voltar a fazer como seus antepassados em que os cultos eram realizados às escondidas, “rezados baixos”, na época que os cultos afro-brasileiros eram considerados crimes e perseguidos pela polícia.
A liberdade de culto será preservada nesse julgamento? Tenho minhas dúvidas, principalmente no contexto político, jurídico e midiático atual, em que forças conservadoras têm conseguido impor seus interesses. Por isso, é necessária a articulação e organização de toda comunidade religiosa afro-brasileira, a exemplo do que ocorreu no Rio Grande do Sul, para resistir e lutar pela garantia da continuidade de seus cultos e liturgias. 

José Roberto Oliveira dos Santos

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