A intolerância religiosa não é um fenômeno recente. A
história registra e nos faz conhecer alguns desses terríveis momentos. Apenas
para ficarmos no cenário potiguar cito o registro de Cascudo no livro
“Meleagro” que narra a prisão de casal por praticar ritual do catimbó-jurema e
que são obrigados a realizar o ritual na própria delegacia.
Conheci alguns dos antigos religiosos afro-brasileiros
de Natal que narravam proibições, perseguições, prisões, por praticar a
religião. Seu Geraldo Guedes, Babá Karol, Geraldo do Caboclo, dona Olívia
Muniz, já falecidos. Seu José Clementino, do bairro das Rocas, lúcido, em seus 80
e poucos anos, pode contar essa história.
Os religiosos que estão aqui também têm seus registros
da intolerância vivida. Se pessoalmente não viveu, no mínimo conhece alguém
vítima da intolerância religiosa. Essas pessoas têm nome, endereço; são
trabalhadoras e trabalhadores; pagam impostos.
A primeira vez que ouvi um desses relatos foi no final
dos anos de 1980. Os vizinhos tinham jogado pedra no telhado do espaço
religioso na hora da realização do ritual. Na sequencia, fui ouvindo mais e
mais relatos. E eles foram ganhando forma e complexidade diferentes.
O vizinho registra queixa na delegacia. O motivo! O
som dos atabaques. O trabalhador é agredido fisicamente em sua própria rua por
pertencer a um terreiro. Na localidade de Guanduba, uma comunidade age de forma
intolerante impedindo o funcionamento da casa religiosa. Pai de santo se torna
réu em um processo fruto de acusação sem fundamento legal. Na escola, criança é
qualificada como praticante de religião do diabo. Pessoas públicas se posicionam
de forma preconceituosa e intolerante. O
monumento a Iemanjá é depredado.
Desqualificação, ofensa em palavras, agressão física,
violação por parte do Estado brasileiro. Esse é o quadro.
Sou um pesquisador, mas é claro que minha fala é
também permeada por afetos e respeito pela religião, pelas religiosas e
religiosos, aprendidos ao longo dessas ultimas três décadas de trabalho.
Em nossos estudos inicialmente acreditávamos que a
questão podia ser compreendida como parte da disputa por mercado de bens
simbólicos; disputa por público. Logo percebemos que também existia outro
componente, que corresponderia a uma forma muito particular de racismo. A intolerância religiosa assume formas e
contornos racistas cada vez mais complexas. O que chamamos de intolerância
religiosa se transforma em um racismo religioso que desqualifica, persegue,
criminaliza.
Outros dois fatores compõem o campo de análise,
somando-se aos dois pontos que acabei de especificar. Trata-se da fragilidade
socioeconômica e institucional das comunidades de terreiro, como a laicidade do
Estado brasileiro.
É certo que esta audiência tem um compromisso –
debater o vilipêndio da estátua de Iemanjá e apontar encaminhamentos de
resolução. Particularmente quero ressaltar que a estátua deve ser tomada como
um bem simbólico, expressão de representações do mundo cultural e, como tal,
concebida como monumento público da cidade do Natal, o que implica, no mínimo,
em responsabilidades por parte do poder público municipal.
Todavia, volto a destacar que a questão é mais ampla.
Não é específica da estátua de Iemanjá. A questão da intolerância religiosa
está presente na escola, na rua, no bairro, nos espaços públicos e nos espaços
institucionais. Trata-se de questões que atinge diretamente a premissa
inviolável do direito de culto manifesto na Constituição Federal de 1988.
Comunicação proferida na Câmara Municipal de Natal
durante a audiência pública promovida pelo mandato da Vereadora Natália
Bonavides sobre intolerância religiosa.
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