sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Racismo religioso

A intolerância religiosa não é um fenômeno recente. A história registra e nos faz conhecer alguns desses terríveis momentos. Apenas para ficarmos no cenário potiguar cito o registro de Cascudo no livro “Meleagro” que narra a prisão de casal por praticar ritual do catimbó-jurema e que são obrigados a realizar o ritual na própria delegacia.  
Conheci alguns dos antigos religiosos afro-brasileiros de Natal que narravam proibições, perseguições, prisões, por praticar a religião. Seu Geraldo Guedes, Babá Karol, Geraldo do Caboclo, dona Olívia Muniz, já falecidos. Seu José Clementino, do bairro das Rocas, lúcido, em seus 80 e poucos anos, pode contar essa história.  
Os religiosos que estão aqui também têm seus registros da intolerância vivida. Se pessoalmente não viveu, no mínimo conhece alguém vítima da intolerância religiosa. Essas pessoas têm nome, endereço; são trabalhadoras e trabalhadores; pagam impostos.  
A primeira vez que ouvi um desses relatos foi no final dos anos de 1980. Os vizinhos tinham jogado pedra no telhado do espaço religioso na hora da realização do ritual. Na sequencia, fui ouvindo mais e mais relatos. E eles foram ganhando forma e complexidade diferentes.  
O vizinho registra queixa na delegacia. O motivo! O som dos atabaques. O trabalhador é agredido fisicamente em sua própria rua por pertencer a um terreiro. Na localidade de Guanduba, uma comunidade age de forma intolerante impedindo o funcionamento da casa religiosa. Pai de santo se torna réu em um processo fruto de acusação sem fundamento legal. Na escola, criança é qualificada como praticante de religião do diabo. Pessoas públicas se posicionam de forma preconceituosa e intolerante.  O monumento a Iemanjá é depredado. 
Desqualificação, ofensa em palavras, agressão física, violação por parte do Estado brasileiro. Esse é o quadro. 
Sou um pesquisador, mas é claro que minha fala é também permeada por afetos e respeito pela religião, pelas religiosas e religiosos, aprendidos ao longo dessas ultimas três décadas de trabalho.
Em nossos estudos inicialmente acreditávamos que a questão podia ser compreendida como parte da disputa por mercado de bens simbólicos; disputa por público. Logo percebemos que também existia outro componente, que corresponderia a uma forma muito particular de racismo.  A intolerância religiosa assume formas e contornos racistas cada vez mais complexas. O que chamamos de intolerância religiosa se transforma em um racismo religioso que desqualifica, persegue, criminaliza.  
Outros dois fatores compõem o campo de análise, somando-se aos dois pontos que acabei de especificar. Trata-se da fragilidade socioeconômica e institucional das comunidades de terreiro, como a laicidade do Estado brasileiro.  
É certo que esta audiência tem um compromisso – debater o vilipêndio da estátua de Iemanjá e apontar encaminhamentos de resolução. Particularmente quero ressaltar que a estátua deve ser tomada como um bem simbólico, expressão de representações do mundo cultural e, como tal, concebida como monumento público da cidade do Natal, o que implica, no mínimo, em responsabilidades por parte do poder público municipal.  
Todavia, volto a destacar que a questão é mais ampla. Não é específica da estátua de Iemanjá. A questão da intolerância religiosa está presente na escola, na rua, no bairro, nos espaços públicos e nos espaços institucionais. Trata-se de questões que atinge diretamente a premissa inviolável do direito de culto manifesto na Constituição Federal de 1988.
 
Comunicação proferida na Câmara Municipal de Natal durante a audiência pública promovida pelo mandato da Vereadora Natália Bonavides sobre intolerância religiosa.

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