quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Estátua de Iemanjá: apagar, silenciar a cultura?

 

O apagamento e silenciamento da memória cultural afro-brasileira por grupos sociais hegemônicos é histórico e faz parte do racismo sistêmico brasileiro, moldado a partir de estratégias de dominação de valores morais e culturais de acordo com os interesses dos grupos envolvidos. O exemplo mais recente parece ser o caso da proposta divulgada pela @AMAPraiaDoMeio, na rede Instagram, em que sugere uma organização para o patrimônio paisagístico da orla central de Natal, a qualificação do local ou a relocação do monumento a Iemanjá para a Ponta do Morcego.  

Em um tempo ainda próximo, a estátua foi depredada por constantes atos de vandalismo e intolerância e, inclusive, ficando em um estado de completo abandono pelo poder público. A batalha para fazer reerguer a estátua foi uma ação coletiva dos povos e comunidades de terreiros da cidade de Natal. Igualmente coletiva foi a luta travada, desde os anos de 1970, pelos primeiros umbandistas da cidade, mulheres e homens, mães e pais de santo, junto as instituições e políticos locais para demarcar um espaço simbólico à Iemanjá, representativo da identidade do universo religioso afro-brasileiro. Não foi à toa que esses primeiros umbandistas pensaram o palanque das autoridades, exatamente naquele lugar, um lugar provido de sentidos, para celebrar a passagem de ano novo. 

A estátua de Iemanjá da Praia do Meio encontra-se inserida na paisagem da cidade de Natal, já faz parte da cidade, não é demais repetir; significa dizer da sua relação com a urbis e com os seus habitantes, embora permeada por intolerâncias e, talvez, para algumas pessoas, o desejo de vê-la longe. Existe um processo histórico construído por uma comunidade religiosa, afirmando seus valores culturais, conhecimentos, pertencimentos, memórias. É um patrimônio cultural da cidade e das comunidades tradicionais de terreiros e enquanto patrimônio deve ser considerado o amparo constitucional. A nível local, a Lei 7.248 de 24 de novembro de 2021, declara Patrimônio Cultural Imaterial do Município de Natal os “Festejos de Iemanjá“, realizados anualmente no dia 02 de fevereiro. 

Será que vamos continuar a assistir a repetição de tantos outros apagamentos e tentativas de silenciamentos da cultura? 

Em um tempo também recente, a partir da década de 1980, quando a cidade vivencia o processo de urbanização e expansão urbana em direção a Zona Norte, as casas de terreiro, muitas delas localizadas em bairros populares tradicionais, foram forçadas a seguir o fluxo da referida expansão, em geral para os loteamentos na periferia da cidade, provocadas pela organizaçãoe pressão do próprio bairro que não admite a sua presença, instalada de forma escondida atrás da residência e a maioria sem identificação de que ali existe um templo religioso. São tantos e muito conhecidos os casos: Dedé Bahiano, Mãe Tercília, Mãe Nem. O processo continua. 

Outra estratégia de apagamento e silenciamento da cultura ganha forma no aparato legal conhecido como Lei do Silêncio, regulação de mecanismos para evitar a perturbação sonora, tomada como base no argumento de denuncia formulada por vizinhos e que visa cercear ao exercício da manifestação religiosa e que pode levar ao fechamento de muitas casas de terreiro. O Palácio da Mestra Paulina e seu sacerdote, Babalorixá Naldo (Erinaldo Soares da Silva) são exemplos dos muitos casos que continuam acontecendo e que fazem parte da estatística do silenciamento religioso natalense. A casa do Babá Naldo ficou um ano e quatro meses fechada, significa dizer impossibilitada de realizar o ofício religioso e ao atendimento a sua comunidade. Ao final do desgastante processo e sem condições psicológicas de continuar ao lado do vizinho intolerante, o babalorixá vende o imóvel localizado em Nova Natal e após alguns anos de reorganização da sua vida, consegue reabrir novo espaço religioso em outro local.  

São muitas as estratégias de apagamento e silenciamento da memória cultural afro-brasileira. Voltemos a Estátua de Iemanjá. 

Iemanjá na Praia do Meio possui outra dimensão, àquela que diz respeito ao território simbólico. O espaço geográfico da praia se torna mais amplo ao incorporar as representações do mundo da cultura dos lugares do Areal, Rocas, Brasília Teimosa, espaços sociais populares, permeados por múltiplos sentidos e práticas de pertencimentos, impressos na resistência do cotidiano e expressões culturais de mulheres e homens, referendados na narrativa local do lugar como berço da tradição cultural negra da cidade.

 

Em memória das/os participantes da fundação da Federação dos Cultos de Umbanda do RN (05 de maio de 1963): Antonio Martins de Oliveira, Albina Alves Pessoa, Babá Karol, Cícera Alves, Edilson Barbosa do Nascimento, Elias Gosson, Francisco Moreira da Silva, Geraldo Guedes, Iolanda Xavier Bezerra, José Clementino, José Cícero Herculano, João Miranda, João Pereira de Andrade, José Dantas, Jonas Gomes da Silva, José de Gois, Lúcia Flor, Maria Lina Bezerra, Pedro Raimundo Medeiros, Raimundo Paulino, Severino Monteiro, Tenente Barroso, Zacarias Galdino, entre outras/os.

 

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