sábado, 4 de abril de 2015

Os sentidos do sacrifício na religiosidade afro-brasileira


O Núcleo de Estudos da Religião, da UFRGS, vem acompanhando e debatendo um projeto de lei que tramita no legislativo gaúcho e pretende submeter os rituais afro-brasileiros que envolvem animais às mesmas regras que presidem o chamado "abate humanitário". José Carlos dos Anjos, professor do Departamento de Sociologia da UFRGS, desenvolve sua crítica a tal concepção.

Olhando-se para a religiosidade afro-brasileira pelo mesmo ângulo que se promoveu o tráfico de milhões de africanos através do atlântico na condição de escravizados e se aniquilou milenares culturas indígenas nas Américas, se pode, sim, concluir que são bárbaros os rituais de sacrifícios de animais realizados nos terreiros. O olhar arrogante que de forma intolerante vem, há mais de um século, policiando, segregando e confinando na temeridade uma forma milenar de religiosidade tem mostrado que pode decretar o fechamento definitivo das casas de religião afro-brasileira do país. Decretar que não é mais legal o sacrifício religioso de animais é o mesmo que banir o culto aos orixás por puro preconceito.

Sob a mesma arrogância colonialista com que no passado se procedeu ao tráfico, escravização, catequese forçada, os religiosos afro-brasileiros estão, hoje, sendo acuados. Serão, os religiosos afro-brasileiros, levados a acatar o que a cultura dominantemente ocidental define como sendo o sentido das coisas do mundo, as sensibilidades em jogo no cosmo? O sentido dos acontecimentos cósmicos podem ser decididos, por decreto, a partir da sensibilidade de uma única cultura? As certezas imperativas terão de ser sempre e em toda a parte aquelas que a tradicional cultura ocidental sanciona? Os sentidos ocidentais de verdade e as sensibilidades ocidentais em relação ao sofrimento, ao que é humano, o belo, o divino, continuarão a ditar a ordem do mundo sem a menor abertura em relação a possibilidade de que essa outra cultura – a afro-brasileira – tenha reconhecida a condição de “maioridade” para dizer o que é válido para ela, a sua verdade humana, natural e cósmica?

O sacrifício de animais nos terreiros dá-se numa forma milenar de cultura que não separa o divino, o humano e o natural nem mesmo no sofrimento. No sacrifício há uma única pessoalidade em metamorfose e renascimento. Por estarem congregados numa unidade, o sacrifício é um momento especial de fusão de destinos e renascimentos em uma unidade simultaneamente animal, humana e divina. O sacrifício só ocorre na medida e quando não há a recusa das três partes que se entregam ao acontecimento cósmico. As acuradas sensibilidades desenvolvidas na religião para o cuidado do animal não podem ser substituídas por técnicas veterinárias, porque aquelas são mais antigas, sensíveis, mais sofisticadas e sobretudo, abertas a insondáveis dimensões cósmicas.

Porque uma religião milenar deveria se curvar ao culto moderno da ciência quando ela carrega suas próprias ciências e seu sentido de verdades que se situam para além das questões que técnicas modernas podem apreciar? Quando se coloca a religiosidade afro-brasileira diante de exigências de comprovações veterinárias de não-sofrimento animal, se poderia perguntar ainda, “porque algumas ciências devem ser levadas em conta e outras não?” Outras disciplinas acadêmicas, com um século de proximidade em relação à religiosidade afro-brasileira, como é o caso da antropologia e da sociologia, em nenhuma das suas expressões e controvérsias, desqualifica o sacrifício animal na religiosidade afro-brasileira como forma de crueldade. Essas outras disciplinas não deveriam ser levadas em conta nesse debate atual? Internacionalmente reconhecidos clássicos das ciências sociais nacionais (como Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edson Carneiro) e estrangeiros (como Juana Elbein dos Santos, Pierre Fatumbi Verger, Roger Bastide) em nenhum momento de suas vastas obras renegaram o sacrifício animal na religiosidade afro-brasileira. Pelo contrário, todos estiveram próximos do lapidar enunciado de Bastide: "A filosofia do candomblé não é uma filosofia bárbara, e sim um pensamento sutil que ainda não foi decifrado" (Bastide, 1978).

Um pouco menos de arrogância deveria levar os não-religiosos afro-brasileiros, interessados no tema, a respeitosamente, diante da diferente relação cósmica, perscrutarem a lembrança de que todo o nascimento dá-se no e pelo sangue – em seus múltiplos sentidos cosmológicos. O ritual poderia, para os de fora, situar mais do que uma memória da condição humana; poderia monumentalizar uma esperança. A esperança do renascimento humano menos conflituoso e mais imerso na natureza – essa lembrança sempre renovada nos sacrifícios da religiosidade afro-brasileira. Sem proselitismo, a religiosidade afro-brasileira não pede que a sigam, apenas respeita e se dá ao respeito dos que não comungam dos mesmos valores. Com essa postura se abre ao diálogo.

Referência
BASTIDE, Roger- O Candomblé da Bahia - São Paulo, Nacional, 1978.


 

3 comentários:

  1. Olá, boa noite!

    Quero parabenizar este blog, sempre tão dinâmico e eficiente. Também gostaria de saber se o responsável pelo mesmo, tem como me indicar uma casa de umbanda genuína, em Natal. algum local que se trabalhe com seriedade e respeito aos princípios da umbanda.

    PS.: há algum email para contato?

    Desde já, grato!

    Alex.

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  2. Alex, bom dia.

    Agradecido pela observações sobre nosso Blog. Aproveito para pedir para vc divulga-lo. Sobre as casas de umbanda de Natal, sugiro vc dar uma olhada no mapeamento com a listagem de alguns terreiros de Natal. Está no lado direito do Blog. É só clicar que iras encontrar a relação, inclusive por bairro.
    Muito Axé.

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    Respostas
    1. Ah, não tinha reparado esse mapeamento. Muito bom!

      Sim, divulgarei com prazer.

      Grato pela atenção!

      Axé!

      Alex.

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