O texto a seguir foi escrito por Carmem Vasconcelos e publicado na coluna Quadrantes do Jornal Tribuna do Norte – Natal, domingo, 02 de agosto de 2009. É daqueles escritos que após a leitura nos leva a pensar, silenciosamente, na nossa existência, na vida. Merece ser lido. Por isso fiz a sua transcrição para o Blog.
“Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro. Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...”.
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos
Não sei bem quando endureci. Não sei em que lugar do tempo comecei a criar crostas para suportar o repúdio. Infinitas cascas acabaram me protegendo até do afeto. Não sei mesmo quando isso tudo começou e é certo que uma coisa é início e outra bem diferente é iniciação, sendo esta um prolongamento, enquanto aquele é fugaz, mal começa, já finda, pois o que continua não pode mais ser início. As cascas sobrepostas foram resultado de uma iniciação, de um rito de passagem para quem hoje sou. Não é da noite para o dia que se endurece.
Também não é da noite para o dia que se perde a inocência. Ela remancha para sair da gente, para dar lugar ao desencanto. Mas acontece. E quando finalmente a inocência se vai, a gente se fecha na própria descrença. Ou fica descrente e mesmo assim não se fecha. Vai seguindo.
Entre omitir-me e viver, resolvi não recusar as culpas. Pela minha natureza, seria impossível escolher a omissão e assim tentar uma existência intacta. Mas escolher a ação é aceitar feridas, muitas. Escolher a ação é também aceitar ferir. Escolher a ação é certeza de cometer erros, de ser atacada. É estar no olho do furacão. Foi por isso que aprendi a não remover as cascas que iam nascendo em cada ferimento. Que caíssem sozinhas e deixassem em seu lugar maior resistência, era o seu destino. O meu é, talvez, resistir.
Mas há um tempo para todas as coisas, como diria o Eclesiastes. Um tempo para resistir e outro para me dar o direito de ficar na ostra. Depois da resistência, tranco-me em casa e fico a admirar fractais, uma festa para os olhos e para o espírito. Formas infinitas que se dividem, se recriam e se recriam, umas nas outras, essas matrioskas matemáticas. Minhas cascas, minhas coberturas, eu sonho, são também fractais. As resistências são fractais. Uma vez e outra e mais outra...
Fractal vem do latim e quer dizer quebrado. Mas quem disse que às vezes a gente tem de ficar inteiro para resistir? A gente resiste se quebrando também. As matrioskas são as bonecas russas que sempre se dividem para revelar uma outra de si mesma, inteira, por dentro. E depois outra, e mais outra. Vezes seguidas. E por aí vamos, ao infinito. Às vezes a gente tem de se quebrar para ter acesso às nossas inteirezas.
E são as nossas inteirezas que nos protegem.
Por isso quero ter inteireza, estar cheia delas. Mesmo sabendo que a inteireza é o bom e o ruim, o claro e o escuro, a alegria e a tristeza. Mesmo sabendo que estar inteira é ter-se partido algumas vezes. Mesmo sabendo que estar inteira é fazer-se de partes, muitas partes, partículas.
“Multipliquei-me para me sentir”, disse Fernando Pessoa, que também era Álvaro de Campos e que se partiu para sentir-se inteiro. Como os fractais, multiplico-me. Como os rabos das lagartixas, recrio-me, recresço. Como as plantas podadas, refloresço.
Carmem Vasconcelos
Muito bonito esse texto, precioso. Como é que eu não conhecia essa escritora, ainda? Este é um texto que vale a pena guardar e reler sempre.
ResponderExcluirO texto é delicado e profundo. Algumas expressões e imagens são geniais, como a que reconhece que a inocência remancha a sair de nós para dar lugar ao desencanto. São textos como esse que alimentam o encantamento.
ResponderExcluirPetrucia Nóbrega