Os filhos e filhas de santo se aproximam de Mãe Stella de Oxóssi com os olhos vazando reverência. Ela os acolhe, ouve e aconselha a todos. Na verdade a presença da Ialorixá de 84 anos se impõe sobre a gente em redor, independente de crença, com uma firmeza suave. Mãe Stella não parece falar em nome de nenhuma religião, mas representar (encarnar) o sagrado de que a humanidade não pode abrir mão. Não há como permanecer incólume diante de seu apelo firme pelo respeito e o amor entre as pessoas. Nesta conversa ela reafirma uma vez mais as suas posições já bastante conhecidas, e por vezes polêmicas, com a sobriedade e o desassombro de quem, por saber o que diz, não precisa provar nada para ninguém. Presente de Dia da Consciência Negra.
James Martins – Eu quero que a senhora comece falando sobre a relação da religião com o poder, com a política, porque o candomblé, historicamente, teve uma relação conturbada com os poderes oficiais, com perseguição policial e tudo o mais, mas também, por outro lado a fundadora desta casa [Ilê Axé Opô Afonjá], Mãe Aninha teve uma boa relação com Getúlio Vargas, teve aquela lendária visita dela ao Palácio do Catete. E a Senhora, como é que tem se relacionado com...
Mãe Stella – A minha relação com Lula? (risos) Sim, porque se ela se relacionou com Getúlio Vargas eu posso me relacionar com Lula, não é? É a mais amena possível. Ele nunca nos perseguiu, e pelo gosto dele também ninguém é perseguido. E com os governantes de Salvador também, na atualidade, que aquelas coisas já passaram, de chefe de polícia e tudo o mais... Eu posso dizer que o candomblé resistiu àquelas opressões todas e por causa da força dos nossos orixás e do nosso merecimento, nós nos livramos delas. Agora, das maldades da atualidade fica difícil se livrar.
JM – Quais seriam essas maldades?
Mãe Stella – Maldades... filho matando mãe; outros matando por causa de uma camisa; outro querendo ofender algum outro; outro com conversas capciosas; tudo isso são ofensas que dão até para matar o sujeito. Mas, quando a gente tem compromisso com a verdade, compromisso com o bem, tudo isso é superado. A discriminação existiu e ainda existe, mas a resistência do candomblé, do povo de axé, supera essas coisas todas. E nós não temos muito tempo para prestar muita atenção aos opressores, aos perseguidores. Nós estamos é trabalhando por uma causa que é a religião.
JM – E o candomblé tem essa relação de respeito aos mais velhos como um princípio, a relação com a ancestralidade. Isso tem faltado talvez hoje na vida cotidiana da sociedade?
Mãe Stella – É o sujeito não respeita mais o pai, nem a mãe, nem o mestre, não é? Todo mundo agora é muito igual. E o que segura à religião até hoje é a hierarquia, é o respeito pelo mais velho, pelo superior. E o superior, para nós, é o mais velho. E nós, mais velhos, que eu já sou uma senhora de 84 anos, temos a obrigação de trabalhar em prol da moral, dos bons costumes e das boas ações, para poder deixar plantado isso pra vocês que chegam depois, como um exemplo, para a gente poder viver feliz.
JM – E aí entra também a questão do ensino formal. Aqui no terreiro tem uma escola, batizada com o nome de Mãe Aninha, onde se ensina também a religião afro-brasileira, digamos assim, não é?
Mãe Stella – Nós não ensinamos a religião. Nós falamos sobre o candomblé de uma forma social, de uma forma didática, cultural... Não é ensinando propriamente candomblé, mas mostrando também que toda religião, como todo ser humano, merece respeito e consideração. Então, se o candomblé abriga uma escola, que é a Escola Eugênia Anna dos Santos, é evidente que nós também incrementamos aquele respeito para com a nossa religião, para com o povo de axé. E nós agradecemos também às autoridades constituídas que instituíram aquele decreto onde toda escola deveria ensinar alguma religião, sem ser forçado ensinar apenas tal religião, por que é a oficial. Não existe religião oficial. Toda religião é aceita, desde que não vá contra a moral, nem contra a humanidade.
JM – E quanto ao tombamento do Axé? Eu li uma declaração muito inteligente da senhora, argumentando com algum receio sobre o tombamento, porque, embora traga segurança, também tem o lado de manter as coisas estáticas, e a mudança também é necessária.
Mãe Stella – É, quando eu falei isso – e continuo dizendo - é porque, pra gente conservar qualquer coisa que tenha, até um simples anel, de vez em quando precisa dar um lustro não é? Se uma telha de sua casa cair você quer consertar. E o ‘Patrimônio’ [o IPHAN – Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional], ele gosta de conservar as coisas como eram no princípio. Eles acham aquilo de tal importância que não pretendem mudar. Mas quando a gente fala não mudar, não quer dizer que vai deixar cair porque não pode mexer. Se essa casa aqui, uma árvore cair em cima do telhado, é evidente que eu tenho que trocar o telhado. Isso não tá mudando, de maneira nenhuma, a arquitetura. E o meu receio era esse, que não pudesse mexer como a gente queria pra embelezar, pra conservar. Mas quando eu vi que não era isso, que era apenas para segurar o imóvel, então eu achei que seria uma coisa boa, principalmente por causa da especulação imobiliária, o lance das invasões e tudo e o IPHAN é um aliado.
JM – E falando nisso, teve aquele caso polêmico da derrubada de um terreiro pela prefeitura de Salvador.
Mãe Stella – É, eu soube pelos jornais... mas nem posso falar nada por que só soube pelos jornais mesmo.
JM – E ainda falando mais ou menos disso, segunda-feira eu estive aqui pro xirê de Iroko, e notei que vários trechos das cantigas sagradas foram estilizados e aproveitados por compositores em músicas profanas, da chamada indústria cultural. Qual é o limite que a senhora considera necessário para essa apropriação de símbolos sagrados no mundo profano?
Mãe Stella - Se for para o profano deixa de ser sagrado. Então, eu não sou contra que numa canção cite qualquer palavra, ou mesmo algum símbolo do candomblé, contanto que não vá mexer na profundidade do sagrado. Você vê que até com a igreja católica acontece isso... sambas de roda [cantarola] ‘oh minha nossa senhora (...)’ e não sei o que! Tá depreciando? Não tá. É a mesma coisa aqui com o candomblé. São palavras que eles tiram pra fazer rimas dentro de um sentido e também não acho que seja nada demais. Agora o que não deve ser é empregar do sagrado em festas profanas como escolas de samba, carnaval... vestidos de orixá – porque o orixá para nós é sagrado- em cima do trio elétrico, essas coisas é que nós não admitimos.
JM - O candomblé é muitas vezes abordado como um exotismo quase folclórico, o que, de certa forma atrai muita gente aos locais sagrados como se estivesse indo ao teatro. Como é que a senhora lida com a sociedade de consumo do candomblé?
Mãe Stella – Isso existe porque o mal informado às vezes quer bancar o sabido, não é (?), aí fala asneiras... mas a gente não pode perder muito tempo com essas coisas não, que aí é retrocesso. Se a gente tem certeza do que faz, tem uma coisa correta, deixe quem quiser falar e vamos ter consciência de que nós estamos no caminho certo. O demais é a ignorância. O ignorante acha que é sabido e passa por bobo (risos).
JM – Eu queria que a senhora falasse um pouco de sua mãe espiritual, que foi a lendária Mãe Senhora de Oxum.
Mãe Stella – Senhora é insubstituível, por que não pode encarnar outra Senhora, não é? Mas a presença dela, os ensinamentos, para mim não existem iguais. Aprendi muita coisa com ela e pretendo conservar.
JM – Já é bem conhecida a sua posição, mas eu quero pedir que a senhora fale uma vez mais sobre a sua posição contrária ao sincretismo religioso nos dias de hoje.
Mãe Stella – Já está cansativo, mas é que se você acredita numa coisa, tem certeza do que faz, então para quê misturar com outra prática? Quem faz isso está misturando tudo e não está satisfazendo, nem agradando, nem valorizando ninguém. Fica como uma salada não é?
JM – E esse boom pentecostal, as igrejas evangélicas crescendo tanto em Salvador, temos um prefeito evangélico, chegamos a ter várias lideranças ligadas às igrejas evangélicas encabeçando as pesquisas na última eleição municipal. Isso incomoda de alguma forma, já que eles têm uma postura tão intransigente quanto às outras religiões?
Mãe Stella – Não rapaz, o sol nasce para todos. A política não exige que você para se candidatar a tal coisa tenha que seguir tal prática religiosa. Então a gente entrega ao divino que ele deixará vencer aquele que for o melhor para a humanidade. De repente o candomblé não é o melhor para a humanidade. De repente outra religião é o melhor. Então vamos pedir para que o melhor fique. Quando chega um candidato aqui e pedem para ser apresentados ao orixá, eu peço, na frente do candidato, que se for para o bem dele e da sociedade, que ele seja eleito. E se o orixá vir que ele é bom, ele vai ficar. Nós não temos preferência de religião, embora para nós a nossa seja a melhor, é claro, não tem outra. Mas não é que ela seja a verdadeira para a humanidade, nem seja boa para a humanidade. Já se ouviu tanta atrocidade em cima da religião católica, não é? A mesma coisa com outras religiões, o próprio candomblé, muita gente diz que a gente anda só pra maldade, tudo isso... e não é. Cada um faz a fantasia que quer em cima da coisa.
JM – Eu sei que a senhora gosta de ir ao cinema. Chegou a ver este filme novo, Besouro, sobre o capoeirista?
Mãe Stella – Não.
JM – Quais foram os últimos filmes que a senhora viu?
Mãe Stella – (risos) Agora com televisão ninguém vai mais ao cinema. Eu mesma não vou, porque é mais cômodo, ficar na televisão assistindo aos programinhas de tarde... Sou uma senhora de 84 anos, não dá muito tempo não. Prefiro ir, às vezes, num teatro, uma coisa assim mais diferente.
JM – Só para terminar eu vou falar os nomes de algumas pessoas e a senhora me diz o que elas te lembram. O primeiro: Pierre Verger.
Mãe Stella – Ah, foi um jornalista, um amigo do candomblé, que deixou muito trabalho pronto aí.
JM – Antonio Carlos Magalhães.
Mãe Stella – Uma figura política, baiana, inesquecível também.
JM – Dorival Caymmi.
Mãe Stella – Outro. Cantor inesquecível, filho da casa, nosso amigo, nosso
irmão.
JM – Vivaldo da Costa Lima.
Mãe Stella – Ave Maria! Tá vivo aí e eu peço a Ogum todo dia que segure ele na terra, que ele é uma figura ímpar no candomblé e na sociedade, por que é um grande professor.
JM – Carybé.
Mãe Stella – Outra lembrança, assim de saudades mesmo, por que ele foi nosso irmão e nos ajudou bastante.
JM – E por fim Jorge Amado.
Mãe Stella – Outra figura interessante também, que era daqui do Axé também e ele botou, ao modo dele, de uma forma lúdica, as coisas da prática do candomblé nos livros, de uma forma interessante.
JM – Muito obrigado. E agora deixe uma mensagem para a Cidade do Salvador.
Mãe Stella – Que vocês continuem divulgando as coisas assim sempre de uma forma certa, corajosa, verdadeira... e que vá servir para tocar no coração dos homens, que eles sejam mais humanos, os filhos respeitem os pais, respeitem os mais velhos, respeitem a sociedade e a Deus. E a você também, que seja um bom jornalista.
Entrevista publicada em 20.11.2009
Fonte: Bahia Notícias
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